domingo, setembro 03, 2006

Memento

Não nos uniu o tempo, unem-nos as palavras... fiz-me sócia desta premissa ao ler um memento, um memento ao Homem, ás vicissitudes, ao desejo indómito de apropriação ambiciosa de todos os condimentos da vida, igualável apenas ao seu falhanço. Pois foi neste memento que conheci o Sr. Horácio Domingues, meu Bisavô, perecido desde 1948... foi neste memento que vi mais que simples referências saudosistas e nostálgicas, encontrei o seu ego, aquele Eu tão sublime que só se revela pelas mãos de uma pena. Revelo hoje, em sua honra e especialmente dedicado a uma grande Senhora de nome Carmen Zilhão, esta carta a um mundo que tarda a corrigir pecados e a ouvir consciências...

BellaMafia


Memento, Homo...! por Horácio Domingues



As nossas mãos, trémulas e hesitantes, vão lentamente desfolhar, no caliginoso livro da nossa vida, mais uma página de mistério e de dúvida.
O enigma do dia de amanhã, angustiosa incognita que todos receamos desvendar, continua sendo a perturbadora interrogação que nos entenebrece a ilusória alegria com que pretendemos aturdir-nos, nas efusivas expansões da passagem do ano, num desafio grotesto às inescrutáveis sentenças do impenetrável Destino – esse eterno anónimo, como lhe chamou Compoamor.
E no breve decorrer desse minuto solene, trágico para uns, ditoso para outros, quantos almejados sonhos desfeitos ruiram com fragor no íntimo da cada um e quantas ambições, surdamente apetecidas, se transformaram em realidade venturosa, talvez de curta duração, porque na existência dos seres humanos tudo é efémero e vão!
Sorrisos de felicidade, exultações de júbilo, lágrimas amargas e angústias sem nome, tudo se transmuda e converte na pira mágica Tempo, que pode atear rútilos vulcões ou extinguir em cinzas a ligeira chama da Vida.
A vaidade, as aspirações de grandeza, ínfimos anelos que adejam na escuridão da nossa alma pervertida, suspendem o vôo tenebroso quando soa cá dentro de nós o dobrar lúgubre de mais um ano que morre.
A glória, essa fútil quimera que nos deslumbra e ofusca, ouvindo aquele soturno badalar da meia-noite, suspende os seus volteios fantasmagóricos, para recitar-nos os versos de Rostand

Ils y voudriaient vite leur place
Car bientôt ils seront défunts,
Mais la gloire, la gloire passe
Et n’en dore que quelques-uns.

O amor – centelha sublime que enobrece e escraviza a Humanidade, dúvida perene que lhe dá a torturante certeza do Engano – abre os braços jovens e fortes à Beleza, imagem translúcida e fugidia, gêmea do Desejo e, quando os fecha, só neles encontra, já sem vigor, a senil Velhice, fria e execranda como a Morte.
Longe do engenhoso ruído dos festins, cá fora, no silêncio da noite, as coisas vis da Natureza, os penhascos, os seixos, as areias dos caminhos, que talvez já foram firmamento nebuloso e lava ardente, para se associarem à gestação primária do Mundo e que, desde a formação da crosta terrestre, assistiram, caladas e impassíveis na sua materealidade, a todasas convulsões, silenciosamente comentam, com mudo desprezo, as preocupações do Homem, esse verme que se julga gigante e que conta aflitivamente as horas, não vão os vermelhos risos hilariantes fossilizarem-se em tristes pedras brancas de sepulcros.
O Tempo, alheio a todas as alegrias, a todas as dores e a todos os escarneos, imperturbavelmante vira a sua ampulheta de grãos de oiro e, indiferente, passa sem parar, na sua eterna e invariável ronda pelos Espaços rutilantes, galgando astros, à luz tremeluzente das estrelas.
E um ano novo começa, com os mesmos mistérios, com os mesmos enganos e com a mesma sórdida miséria, nas almas e nos corpos.

1 comentário:

individualidades disse...

fui tomada por uma incrivel nostalgia ao ler os testamentos do "avô".
é sempre bom saber que no final de tudo, não são impressões tidas pelas máquinas fotográficas que nos conseguem fazer voar pelos anos, e desejar tão arduamente conhecer aquele por quem choram.
a pena era o meu "avô", a pena da saudade.
obrigado a ti, mana por saberes chegar tão bem às pessoas com palavras perfeitas, em momentos perfeitos.
obrigado por pela primeira vez dares vida a um retrato, obrigado pela homenagem... obrigada pelos instantes que fizeste reviver em publicares o escrito.
no final são as palavras que nos unem no tempo, tens tanta razão...
continua.

um beijo muito querido, da tua irmã

Ana